quinta-feira, 19 de maio de 2011

ENTRE NÓS com Maria Emília


SERES AMOROSOS - Maria Emília Bottini

Sou psicóloga há algum tempo e gosto do que faço, pois sempre podemos aprender algo com os que cruzam nosso caminho, mesmo que nem sempre seja fácil ou entendível o que aprendemos e o que ensinamos.

Foi num dia desses que aprendi, só o amor nos ajuda a enfrentar situações dolorosas e difíceis.

Assim aconteceu, numa tarde de janeiro, ao fazermos uma visita a um senhor (idoso) cuja esposa encontra-se doente. Ao chegarmos veio nos receber e convidou-nos para entrar. Adentramos e deparamo-nos com uma situação chocante: sua esposa, magérrima, acomodada em uma cadeira de rodas ao lado do fogão a lenha acesso, de pijama longo em pleno verão, de pantufas, com sonda nasal e sem nenhum brilho no olhar. Era um olhar para o nada... Parecia não nos ver... Cabeça caída para o lado. Há treze anos sua esposa começou a ter problemas de saúde e há sete que não fala, não caminha, não se alimenta sozinha. Apenas vegeta presa em seu corpo, em si mesma. Observo-a e ainda percebo sua beleza de outrora, seu cabelo loiro e sua mocidade perdida pelas rugas do tempo. Observo que se encontra bem cuidada e suas roupas asseadas.

Ela desenvolveu Alzheimeir e as comorbidades associadas. Seu companheiro me explica que no início ela não lembrava de fazer a comida, não sabia encontrar a vassoura ou sequer lembrava de ter penteado o cabelo ou feito o almoço. Isto é perder suas referências de vida, é ir aos poucos desocupando a memória de si, do outro e do entorno; é estar presente, mas não estar. É ser apenas um pedaço porque o todo já partiu de si mesmo. Cena triste e dolorosa se você imaginar o que descrevo. Adoecer não é nada divertido ou fácil.

Quando o questiono sobre como tem sido acompanhar sua esposa enferma por tantos anos, ele relata que já está acostumado e que acorda de duas em duas horas todas as noites para mudá-la de posição em sua cama, palco onde viveram o amor da juventude. Relata que cuida dela com a ajuda de seu filho solteiro, que gosta de cuidá-la, é sua tarefa diária. Perguntei-lhe se não havia pensado em colocá-la em um asilo, que isto representava uma possibilidade diante do tempo da doença, ele me olha como se lhe tivesse feito uma pergunta absurda, reage negativamente e repete que a ama e que esta é sua vida.

Falei-lhe que tinha certeza que ele a amava porque senão não a cuidaria, já teria ido embora. Disse-lhe que tinha certeza, também, que ela havia sido uma boa esposa, pois já não havia contato físico íntimo, não tinha mais seu afeto, não tinha mais o seu sentir, não tinha mais sua voz, seu abraço, seu beijo quente... Então, escorreram-lhe abundantes lágrimas em sua face magra e sofrida. O que sobrou realmente foi o amor, somente o amor para tornar visível o cuidado amoroso. Sem ele ninguém cuida do outro, sobretudo um outro doente e sem ação, preso em si, todo mequetrefe, mas desesperadamente humano em sua aparência.

Falei-lhe, olhando em seus lindos olhos azuis, que ele era um homem admirável, que seus filhos deveriam ter orgulho dele. Então contou-me de sua longa vida juntos, de suas lutas, de suas conquistas, do quanto batalharam para ter a tão sonhada terra uma vez que eram agregados, e que tudo o que tinham hoje era fruto de muito sofrimento, muito trabalho e garra e que ela sempre tinha ajudado muito. Enquanto falava havia muita ternura e amor em seu olhar, próprios de um ser amoroso. Fico a imaginar o quanto sua memória é repovoada de cenas de suas vidas: casamento, filhos, beijos, pequenas discussões, ranços que eram amenizados em momentos de amor, de fazer amor....

Eu me despeço dele dando-lhe um abraço da vida inteira, aquele que só alguns raros seres tem a possibilidade de desfrutar e vivenciar.

Ao sair de sua casa, pensei no quanto precisaríamos ter mais seres amoroso que transportam o amor para outra dimensão, para além de um corpo bonito e da beleza física, para além da juventude, para além de si mesmo centrando-o no outro como cuidado que se torna visível pela compaixão, pelo zelo, pelo carinho, pela preocupação.

Há uma música dos Paralamas do Sucesso que diz: “... cuide bem do seu amor seja quem for”. Nas palavras de Boff (1999), o cuidado “(...) somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida”.

Escrevo esta pequena reflexão para nos lembrarmos que nossa humanidade tem sede e fome de seres amorosos; seres que se preocupem com o outro no verdadeiro sentido do importar-se. Parece que cada vez mais raros estes seres são. Seriam mais suportáveis os embates da vida se partilhássemos nossos dias com pessoas que nos amam e que nos amam tanto, mas tanto a ponto de nos cuidar mesmo que estejamos doentes e sem ação. Estes são radicalmente e desesperadamente seres humanos amorosos.

REFERÊNCIA

BOFF, L. Saber Cuidar: Ética do Humano: Compaixão pela Terra. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 1999.

Maria Emília: Psicóloga e Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Aluna especial do Programa de Pós Graduação do Doutorado em Educação pela Universidade de Brasília (UNB). emilia.bottini@gmail.com

2 comentários:

  1. Adorei e me reconheci durante a doença (câncer)da minha mãe. As enfermeiras disseram que eu seria uma ótima enfermeira! Imagine nunca pensei que daria conta, mas meu amor por ela me fez cuidar até o fim.

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  2. Recordo deste comentário...
    Para um ser sensível como você, deve ter sido doloro o quadro que viu por se tratar de um casal idoso do interior... O marido por sua vez sempre dedicado a sua esposa dando exemplo de fidelidade e de amor. Deve sim escrever e publicar as suas experiências como psicóloga junto a este povo menos favorecido.
    Abraços,
    Dinda

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