terça-feira, 26 de julho de 2011

ENTRE NÓS com Maria Emília


AMIGO É CASA
*Maria Emília Bottini

Tive uma colega de faculdade de Psicologia que tornou-se amiga do meu coração, amiga admirável, conforme lembro a letra da música: Amigo é casa (ela foi minha casa colorida, cheia de vida, de entusiasmo, de amor ao próximo e a si mesma, meu jardim florido, minha varanda para o nascer do sol, ela foi...).

Muitos foram os momentos de vida partilhados com ela, momentos lindos e felizes e outros nem tanto, muitas trocas de carinho, de conhecimento, de respeito, de espaço, de energia que partilhávamos nos reunindo por longos anos com outras duas amigas.

No ano de 2005, comentou que faria alguns exames, pois não se sentia muito bem. Ela me contou que estava com câncer nos ossos no estágio quatro, sendo o último estágio o quinto. Que dor esta notícia me causou! Fiquei perplexa ao saber que seu estágio era terminal.

Em que estágio eu estava? Em que estágio você está? Em que estágio nós estamos?

Minha amiga passou trabalho com suas dores e dificuldades, mas enfrentou tudo isso de forma admirável. Não sei se faria o mesmo em seu lugar. Certo dia, fui em sua casa para ler a ela o livro Adivinha quanto eu te amo , então disse a ela o quanto a amava, a questionei como enfrentava dessa forma a finitude e na sua sapiência me disse: “Tem que ser assim, senão tudo o que li e fiz não valeu de nada.” Ela se referia às obras de psicologia, mas era para além desse conhecimento material de onde vinha sua força, sua garra, sua vida. Era para a ordem do que não podemos tocar ou ver, que é a fé, pautada na espiritualidade e não em uma religião.

Enfrentou longos quatro anos: ninguém acreditaria, nem seu oncologista, numa sobrevida tão longa e cheia de vida. Nunca a vi desleixada, abatida, queixar-se de uma dor sequer, nunca ouvi um ai, uma revolta, uma raiva. Neste período, preparou a todos para a despedida, dizia para seus filhos que não queria ficar em cadeiras de rodas ou sendo cuidada por alguém, que antes disso acontecer, deveria partir.

Lembro dela me mostrando suas radiografias em que havia pontos de câncer em todos os seus ossos e que, ao fechar o sutiã ou mesmo ao erguer os braços, poderia romper um deles e a dor seria infinitamente horrível.

Estive no hospital quando de sua última internação e lhe comuniquei que iria fazer Mestrado em Educação, um de meus sonhos. Ela chorou, eu chorei, disse a ela que não queria vê-la chorar, mas ela me disse: “Não estou chorando porque estou triste, choro por sua felicidade”. Pelas condições em que a vi, sabia que não nos encontraríamos mais. Chorei nos longos corredores daquele hospital.

Faleceu em setembro de 2008, após uma entrega para a morte, para o fim. Lembro de, naquela manhã, a caminho da aula, ao olhar pela janela, vislumbrei um lindo nascer do sol e, ao olhá-lo, pensei: “Ela foi ao encontro da luz, de uma intensa luz, porque era um dos melhores exemplares de ser humano que tive a oportunidade de conviver e conhecer, sinto sua falta, uma imensa saudade.” Mas bem que os poetas dizem que a saudade é o amor que fica.

Estive em seu velório: seu caixão estava fechado e havia nele fotos de sua vida com amigos, com familiares, em festas, dançando, vivendo. Não velamos seu corpo morto, mas sim sua vida vivida. Seu desejo era que nos lembrássemos de seu corpo com as marcas de vida e não da morte, não da imagem de um corpo cansado e maltratado por um câncer nos ossos.

Seu corpo foi cremado e suas cinzas jogadas numa região da Serra Gaúcha (RS), sob um ipê roxo que tanto amava.

Você tem amigos? Eles sabem que são seus amigos?

Você já disse que os ama?

Diga a eles pelo menos uma vez que os ama, antes que seja tarde demais e eles já não consigam lhe ouvir.

Dedico este texto a todos meus amigos: os de perto e os de longe, os recentes e os mais antigos.

Referências
CAPIBA, B. L. D. F.; CARVALHO, H. B. (composição). Amigo é casa. In: Amigo é casa ao vivo. Simone Bittencourt & Zelia Duncan, Biscoito Fino, 2008.
MCBRATNEY, S. Adivinha quanto eu te amo. Martins Fontes, 2002

*Maria Emília - Psicóloga, Terapeuta Comunitária e Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Aluna especial do Programa de Pós-Graduação do Doutorado em Educação pela Universidade de Brasília (UNB), Email: emilia.bottini@gmail.com

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